Herculano de Sousa Santos, aos cinquenta anos, vive no lugar da Cela, junto ao Rio Homem, mas faz a sua vida diária na Vila de Terras de Bouro. Este pastor trabalhou na construção de campos desportivos, na região de Lisboa e no Algarve. Em 14 de Setembro de 1978, quando estava a fazer uma mistura de “tartam” para o piso de um campo de ténis, um acidente de trabalho fatídico, provocado por uma betoneira que lhe apanhou o braço direito, alterou profundamente a sua vida. Como não quis ser “o coitadinho da família”, em 1984, decidiu tentar uma nova vida. Aos trinta e cinco anos ainda não era um homem acabado e com esta convicção, decidiu tentar a sua sorte longe da capital. Viver na Serra da Estrela era uma das hipóteses que permitia satisfazer o seu sonho de pastor, mas o acaso fez com que viesse parar a Terras de Bouro. Com uma magra pensão de 7.900$00 teve algumas dificuldades em sobreviver. Mal aqui chegou, consciencializou-se de que não podia viver como um parasita dependendo desta pequena reforma, por isso, começou a trabalhar para a maior parte dos lavradores das freguesias de Valdreu e Moimenta iniciando nestas paragens uma nova vida. Vindimou, podou, sulfatou, pastoreou, enrolou feno, entre outros trabalhos. Foi um verdadeiro moço de lavoura que por um prato de comida foi trabalhando para todos. Aqueles que, regra geral, reconheciam o seu trabalho eram os pobres, dando-lhe, frequentemente, algum dinheiro para tabaco e cerveja.
Muitas pessoas o ajudaram, mas recorda com muito carinho o falecido “Cascalheira” dos “Bicudos” de Vilar. Com este homem bom manteve longos diálogos e, à noite, sempre que ele lhe pedia, lia-lhe a Bíblia, o jornal, entre outras leituras.
Cinco anos volvidos em Terras de Bouro conhece a esposa. Mais tarde negoceia o terreno onde tem a sua casa. Com muita luta e persistência conseguiu aprovar um projecto do IFADAP e compra o terreno onde construiu a sua queijaria. Queixa-se da burocracia porque apresentou um projecto aos 36 anos, mas só o aprovou aos 40, o que o veio a penalizar porque não beneficiou dos benefícios de jovem agricultor. Actualmente, não tem intenção de apresentar mais projectos ao IFADAP ou a ATACHA porque nesses organismos nada se simplifica. O projecto apresentado ao IFADAP levou-o a bom porto por orgulho próprio. Contudo, a rentabilidade dum projecto destes não é fácil de se conseguir porque as exigências são muitas. Só análises da água tem de se fazer três anuais, desratização tem um custo anual de mais de 500 euros. “São muitas e muitas despesas!”, desabafa. Para este pastor, a produção de queijo só é viável com uma produção diária de pelo menos 300 litros de leite.
Concorda com o controlo sanitário, mas a consciência de cada um é quem mantém o controlo sanitário e não as exigências. “O leite requer muita limpeza, mas esta depende quase exclusivamente da consciência de cada um”. Confidenciou à reportagem de “O Geresão” que antes de ter o projecto aprovado já produzia queijo e nunca provocou qualquer diarreia a quem quer que fosse. “Nunca tive problemas com a venda do queijo. Não entendo porquê tanta complicação!”
Mostra o rótulo dos produtos que usa para a desinfestação que tem de ser feita com produtos homologados pelo ministério da agricultura francês. “Isto não faz sentido porque tem de ser tudo passado também com lixívia”. Não concorda com a obrigatoriedade de ter de vender os cabritos para os talhos que pagam mal tendo por isso dificuldade “em ganhar para a bucha”. Vender para os talhos “é uma forma de trabalhar para os ricos”.
É necessário ter-se vocação para se ser cabreiro. “Sou cabreiro não é pelo ganho. É preciso gostar do cheiro das cabras e não só. Com esta profissão não vivo ricamente, mas vivo uma rica vida. Como gosto de ler, posso estar com a mente em qualquer parte do mundo, enquanto as cabras pastam. Não sou ambicioso. Podia ter mais cabras para me darem subsídios. Mas deve haver respeito pelos animais. Gosto de lhes dar boas condições e de tratá-los bem”.
O pastor Herculano quando vê que as águas do rio estão a ser poluídas chama de imediato as autoridades locais. Conta-nos que junto ao moinho do Sousa, no dia da Greve Geral, 30 de Maio último, houve mais um ataque ao Rio Homem. Chegou a suspeitar-se que esta poluição viesse do Ribeiro do Sótão mas, desta vez, as técnicas da Câmara Municipal descobriram que a poluição das águas é feita aqui próximo. Nesse dia, o caudal começou a ficar turvo por volta das 13 horas e quando eram 14 horas as águas ficaram completamente brancas. A engenheira Ida, juntamente com “Os Verdes” (os guardas do ambiente), recolheram amostras da água que foi para analisar. O agente poluente que apareceu nas águas do rio deve ser à base de cal ou de cimento. Presume-se que esta poluição foi provocada pela lavagem de camiões de betão. Lembra que hoje, é quase mais caro um litro de água do que um litro de gasolina. “Nós temos o Rio Homem, mas não podemos permitir que estejam a matá-lo. O(s) malandro(s) que, no mês de Maio, poluíram três vezes o Rio Homem estão a desafiar-nos. É preciso pôr cobro a isso!” O rio é para si a sua “sala de estar”. Se o rio fosse para todos nós “a nossa cozinha” certamente que todos nós o valorizaríamos.
A lixeira instalada, há anos atrás, próximo do rio matou-o. Alguns levaram muito tempo a perceber que o pastor Herculano tinha razão. Estar contra a lixeira trouxe-lhe muitos dissabores que prefere não recordar. “Mas ainda bem que a lixeira a céu aberto foi desactivada”, afirma-nos com ar de satisfação. Contudo, lembra que as toalhas e os lençóis freáticos estão poluídos e demorarão muitas décadas para se recomporem.
Este pastor considera que se devia investir mais na área ribeirinha valorizando-se o Rio Homem como uma área de lazer. “Aqui devíamos ter unicamente uma praia fluvial e não um parque de campismo”. Junto ao rio, no Verão, cerca de 15 famílias provenientes dos dormitórios da Trofa e da Maia vêm para aqui acampar. O “nível” do rio baixa consideravelmente porque “um traz um cão, um outro traz um cão ainda maior”. Há muita gente da Vila de Terras de Bouro que deixou de frequentar a praia fluvial, garante-nos Herculano. Os campistas que para aqui vêm, instalam-se nas “leiras” por baixo da sua casa e nunca o incomodaram. “Nunca se meteram comigo nem com os meus animais”, afirma o pastor. “Eu tento disciplinar a área. Digo-lhes que a zona de relva não é para colocar tendas, mas unicamente para pôr toalhas. Todos costumam respeitar as minhas orientações. Ninguém quer ver a relva amarela e apodrecida”.
Admira muito Gandhi e Luther King. Enaltece a herança de Gandhi que afirma ser imensa. Sublinha a sua luta pacífica que teve a sua origem na meditação e nos grandes textos hindus. Luther King também foi muito importante “tal como ele, eu quero que a liberdade ressoe! Conhecer o pensamento destes grandes homens, fez de mim um humanista e um naturalista”.
Afirma que o homem não é só matéria, mas força de vontade. Por isso, acredita muito nas filosofias orientais e, em particular, nas budistas. “Agarrei-me a elas para ganhar uma nova esperança de vida.” Para si, o homem forma-se por si próprio. Considera que as religiões ocidentais “arrebanham muito as pessoas, tirando-lhes autonomia”. Por isso, não é devoto, nem segue o culto da religião dominante. “Tanto a política como a religião estão falidas. O homem deve ser humanista, por isso temos de arranjar um novo sistema que valorize mais o nosso íntimo”.
Defende a necessidade de se criar na Vila uma praça da ruralidade. “Acho que se devia trazer a ruralidade para a Vila: uma calçada romana, a Geira, um espigueiro, um moinho, um engenho do linho, para oferecermos algo diferente a quem nos visita. Esta ideia bem aproveitada podia trazer gente e receitas para o Município de Terras de Bouro. Enquanto tal não acontece, na Encosta de Além, o pastor Herculano guarda as cabras, vigia o nosso rio, lê e sonha…
Publicado no jornal o "Geresão" em 20 de Junho de 2007.
1 comentário:
Herculano é sem dúvida um grande homem, como poucos existem, graças à sua riqueza de espírito, riqueza essa que está a milhas de ser alcançada por muito de nós. É impressionante como o ser humano é um ser fútil, olhemos para este homem como um exemplo de maturidade espiritual e intelectual.
Daniel Oliveira
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