Propôs a abertura da cantina à noite. E nós fomos ver como é o dia do deputado, que também chama cantina ao Leões do Rato.O calendário na parede do gabinete do deputado Ricardo Gonçalves, do PS, diz que é Outubro de 2007. Parece fútil mas em todo o País é quarta-feira, 20 de Outubro de 2010. Para o calendário é sábado, dia de descanso. Indiferente, o deputado veste-se no gabinete da Assembleia da República.
É certo que entrara, meia hora antes, no Palácio de São Bento usando fato escuro e camisa azul-clara; passara pelo bar do Parlamento para tomar o pequeno-almoço - uma meia-de-leite e sandes de fiambre, por 1,15 euros, com café. De seguida, subira as escadas - evitando, como sempre, o elevador - até ao segundo piso e entrara finalmente no seu gabinete - usando a chave escondida no corredor.Todos os dias veste a gravata - e apenas a gravata - no gabinete. No bengaleiro tem uma dezena delas: azul com riscas diagonais douradas; várias outras em tons de azul; roxa com quadrados amarelos. E em todas o nó já está feito. O deputado de Braga - nascido em Paderne, uma freguesia do concelho de Melgaço com pouco mais de 1200 habitantes -, de 53 anos e no Parlamento desde 1999, confessa que só agora aprendeu a dar o dito nó. Mas o mais certo é que estas tenham sido preparadas por algum dos seus companheiros de casa, em Lisboa.
"Eu não gosto muito de andar de gravata. Só a uso para ir para o Plenário e para as comissões" - confessa o deputado, enquanto agarra na vermelha, coloca-a ao pescoço e, sem espelho, aconchega-a ao colarinho. "Isto é um género de farda".
No gabinete - que divide com Nuno Sá -, repousa um exemplar da literatura que lhe ocupa o vício. Chama-se ‘Livro' e recorda a emigração para França. "O ‘Livro', do José Luís Peixoto, não é melhor do que o meu [‘Heróis em Transumância, Emigrantes Clandestinos']. E eu fiz isso nos anos 80. Se não fosse a política, escrevia um romance de seis em seis meses".
"SOU SACERDOTE CÍVICO"
Aguarda-o a Comissão Parlamentar de Saúde, mas antes explica porque fora criticado severamente - desde Marcelo Rebelo de Sousa aos ‘Gato Fedorento' - quando declarara, face aos cortes nos salários dos políticos, que "é melhor mas é abrir também a cantina [da Assembleia da República] à noite ou, então, não há dinheiro para comer nos restaurantes", caso venham a haver mais cortes além destes.
"Digo as coisas mais graves com algum sentido de humor - eu raramente vou almoçar à cantina. Propus uma forma de poupança e levo porrada de toda a gente", contesta o deputado. "Sou um sacerdote cívico: não tenho dinheiro, devo a minha casa ao banco e tenho dois carros com dez anos. Mas estou preparado para continuar a fazer política".
Quem conhece o deputado de Braga reconhece-lhe sentido de humor mas também valor político. "É um intelectual". Licenciado em Filosofia, é professor.
Posto isto, Ricardo Gonçalves segue então para a Comissão para ouvir a Associação de Acupunctura. Já vai atrasado. Entra na sala e senta-se. A mesa disposta em ‘U' coloca-o frente-a-frente com Maria José Nogueira Pinto, do PSD. Fora ela que, em Dezembro último, reagindo a uma observação dele sobre a mudança de cor política dela, o chamou de "palhaço". Mas, hoje, já nada importa.
O deputado faz uma intervenção de cinco minutos e 52 segundos. "Até sou utilizador de acupunctura", aproveita para dizer, embora o importante seja que está solidário com as reivindicações deste sector, ao mesmo tempo que também lhes é crítico por não terem uma Ordem e "porque há gente [entre eles] que se deixou adormecer".
Ainda a Comissão não tinha terminado e Ricardo Gonçalves aproveitava para se meter com o deputado do BE João Semedo. "Então, há orçamento ou não há?" - de resto, esta viria a ser a pergunta de retórica que mais vezes o deputado faria, ao longo deste dia, para meter conversa com a Oposição.
NA CANTINA, POR UM DIA
Tem no bolso 69,19 euros, por dia de trabalhos parlamentares, para gastar em refeições e estada. Já são 13h43. O deputado decidiu hoje ir almoçar à cantina. Leva no bolso uma carta de um cidadão, de Atouguia da Baleia, Peniche, que lhe enviou um cheque de dez euros - diz que é para ele comer uma refeição em condições.
Ricardo Gonçalves compra a senha de almoço - 4,90 euros por uma sopa, calamares com arroz de tomate e fruta. Entra na fila para recolher o tabuleiro e, não tarda, outros deputados começam a meter-se com ele. "Então, veio à cantina!?" - vão dizendo. Ao que ele responde, mostrando o cheque: "Veja lá o que dizem de mim que até me mandam dinheiro para jantar".
Só no dia seguinte o deputado iria almoçar ao restaurante do quarto piso da Assembleia da República - pagando 17,50 euros, no bufete -, onde estaria, noutra mesa, Jaime Gama. Ricardo Gonçalves escolheria comer cabrito assado - que acompanharia com vinho alentejano - na companhia de quatro autarcas de Cabeceiras de Basto, Renato Leal, assessor do secretário de Estado António Braga, e mais dois deputados do PS, Isabel Coutinho e Nuno Sá. A conversa dominante nesse dia seria recordar a passagem do açoriano Renato Leal pelo Parlamento, na legislatura anterior.
NO PS, MAS À DIREITA
Esta quarta é dia de debate sobre o aumento do salário mínimo. Às 15h30, Ricardo Gonçalves senta-se no hemiciclo. Pouco depois, conversa com Maria de Belém - e viria a confessar mais tarde: "Daqui a cinco anos, farei de tudo para que ela seja eleita presidente". Mas, para Janeiro, Ricardo Gonçalves promete seguir um caminho enviesado. "Na primeira volta, sou capaz de votar Defensor Moura. O que importa é o Alegre ir à segunda. Aí votaria nele".
Pertence à esquerda liberal e foi sempre um crítico de Sócrates; o deputado de Braga acredita que se o Governo se tivesse coligado com o CDS - ou, numa segunda hipótese, se tivesse formado um bloco central - o País não tinha chegado à beira do abismo.
Às 17h30 votou contra a proposta do PCP sobre o salário mínimo, alinhando pela bitola socialista, que remete a decisão para a Concertação Social. E do hemiciclo foi, rapidamente, para o bar do Parlamento lanchar - um carioca de café, iogurte e salada de frutas, tudo por 4,75 euros.
De volta ao corredor dos gabinetes, Ricardo Gonçalves procura José Manuel Ribeiro para ultimarem um projecto-lei, que propõe abrir ao público todas as reuniões dos órgãos executivos colegiais das autarquias locais. O gabinete hoje ocupado por José Manuel Ribeiro em tempos foi de Sócrates. O 2238 fica mesmo à frente do gabinete de Ricardo. Lembra ele que o actual primeiro-ministro fizera questão de ali ficar para partilhar sala com Pedro Silva Pereira. "Eu e o Sócrates tínhamos discussões bravias à porta dos nossos gabinetes".
O BENFIQUISTA DE BRAGA
À noite começam a fazer-se os preparativos para ver na TV o Benfica-Lyon. A cantina de muitos deputados socialistas é o restaurante Leões do Rato, às portas da sede do PS. Mas não é o eleito para ver o jogo desta noite. Ricardo Gonçalves só iria lá jantar no dia seguinte, pagando 18 euros por uma canja, corvina grelhada e vinho tinto. Nessa ocasião, estaria ao seu lado o deputado João Paulo Pedrosa, de Leiria, que iria contar um episódio passado numa reunião do PS: "Sócrates discursou. O Ricardo pediu para falar e Sócrates disse: ‘Deputado Ricardo Gonçalves, tem 30 segundos para falar'. Ele subiu ao palanque e disse: ‘Muito bem, tenho 30 segundos para te elogiar e o resto do tempo para te criticar'. E assim foi".
O restaurante - ferrenho pelo Benfica - escolhido para assistir ao jogo é O Alves, em Alcântara. Quando Ricardo Gonçalves entrou para se sentar, já os encarnados perdiam por 1-0. Naturalmente que o deputado eleito pelo círculo de Braga se apressa a justificar que, além de benfiquista, é fã do clube da sua terra. Entram na mesa camarões e de seguida peixe-espada grelhado, acompanhado por vinho tinto - ele tem a doença de Crohn, por isso raramente bebe outra bebida alcoólica além de vinho. O jogo não vai de feição, de maneira que a conversa com mais quatro amigos - políticos de Braga e todos eles bem mais jovens - só poderia ser sobre mulheres e anedotas.
Pagos os 15 euros pela refeição, segue à boleia de Jorge Faria, adjunto do secretário de Estado das Comunidades, para o Parlamento. São 22h15. Ainda é tempo de fazer alguns telefonemas para Braga, entre a família e assuntos políticos pendentes.
Como deputado, Ricardo Gonçalves aufere 3624,41 euros ilíquidos por mês (vai perder 362 euros em 2011). Todas as semanas viaja de comboio entre Braga e Lisboa, a expensas do Estado - além de que recebe 412,44 euros para deslocações em serviço. É casado com Filomena, 46 anos, e é ela quem gere o dinheiro lá em casa. "Eu vejo o meu extracto e, quando preciso, digo-lhe: ‘Deposita mais algum dinheiro no meu cartão'", conta o deputado. Não têm filhos - e é neste momento que todo o humor lhe sai do rosto: "Às vezes, penso adoptar uma criança. E acho que devia fazê-lo, tenho muito para partilhar".
De renda e limpeza da casa, em Lisboa, paga 300 euros. Vive no prédio de João Soares, filho de Mário Soares, perto da praça das Flores e a menos de cinco minutos a pé do Parlamento. Partilha a casa com Jorge Faria, José Manuel Ribeiro, Fernando Jesus (também deputado) e Ernâni Loureiro, assessor do secretário de Estado da Economia e Inovação. No seu quarto, Ricardo Gonçalves tem uma mobília comprada em segunda-mão. É apenas uma cama com mesa de cabeceira - onde o rádio toca as notícias da manhã -, uma secretária e um roupeiro. "Eu só uso a casa para dormir", conta.
Como a noite ainda não acabou - e na maioria dos dias com 40 euros gastos em refeições -, por volta das 23h00, seguem alguns deputados do PS para o Café de S. Bento. Lisboa é prodigiosa em espaços de tertúlia. Quando a escolha não recai sobre este espaço, vão ao Snob, Foxtrot, a bares no Bairro Alto, ao Xafarix, ou ao Paço da Rainha. Não são só os deputados que por lá param e conversam, são várias as personalidades lisboetas. Ricardo Gonçalves fica lá até às duas da manhã, apenas bebeu dois Ice Tea, mas os amigos sabem que ele nunca os abandona na noite. Acompanha sempre o último.
AS DECLARAÇÕES DA POLÉMICA
"Foram tomadas decisões muito difíceis, obviamente que sendo eu neste momento deputado sou até dos que perde mais dinheiro (...). Nós, primeiro, tivemos um corte de cinco por cento..." - e, neste momento, é interrompido por um burburinho da assistência, entre risos e conversas trocadas.
"Foi simbólico, não rendeu dinheiro. (...) Agora, (...) levando em consideração o aumento de impostos e cortes, vamos perder 17,5 por cento ao mês, o que equivale a mais de dois salários por ano. Eu já ontem propus no Grupo Parlamentar [do PS], em que o [Francisco] Assis é o líder da bancada, que é melhor mas é abrir também a cantina à noite ou, então, não há dinheiro para comer nos restaurantes".
ERROU A DECLARAR RENDIMENTOS
Na declaração de rendimentos de 2005, entregue ao Tribunal Constitucional, Ricardo Gonçalves expôs como património imobiliário o seu apartamento de Braga - com crédito ao banco de 114 mil euros - e um oitavo indiviso de cinco propriedades em Alvaredo e quatro em Paderne - numa vive a mãe. Mais 28 mil euros a prazo e acções da EDP e da CIMPOR.
Declarou ainda um Mercedes 190D com mais de dez anos. Já em 2009, disse que só devia nove mil euros da casa e que tinha mais um Mercedes C, de 2001. O deputado esclarece que a última declaração "foi escrita à pressa" e que a dívida da casa é de 90 mil euros, além de que não vendeu qualquer bem imóvel da família.
NOTAS
650 EUROS
Num dia normal, o deputado de Braga gasta 41,22 euros em refeições: 650 euros em 16 dias.
300 EUROS
A parte do arrendamento da casa do deputado custa-lhe 300 euros/mês, ou 18,75 euros por dia.
1107,04 EUROS
Recebe 1107,04 euros de subsídio de refeição e estada, 69,19 euros por dia. São 16 dias em Lisboa.
Fonte: Correio da Manhã, 31-10-2010
É certo que entrara, meia hora antes, no Palácio de São Bento usando fato escuro e camisa azul-clara; passara pelo bar do Parlamento para tomar o pequeno-almoço - uma meia-de-leite e sandes de fiambre, por 1,15 euros, com café. De seguida, subira as escadas - evitando, como sempre, o elevador - até ao segundo piso e entrara finalmente no seu gabinete - usando a chave escondida no corredor.Todos os dias veste a gravata - e apenas a gravata - no gabinete. No bengaleiro tem uma dezena delas: azul com riscas diagonais douradas; várias outras em tons de azul; roxa com quadrados amarelos. E em todas o nó já está feito. O deputado de Braga - nascido em Paderne, uma freguesia do concelho de Melgaço com pouco mais de 1200 habitantes -, de 53 anos e no Parlamento desde 1999, confessa que só agora aprendeu a dar o dito nó. Mas o mais certo é que estas tenham sido preparadas por algum dos seus companheiros de casa, em Lisboa.
"Eu não gosto muito de andar de gravata. Só a uso para ir para o Plenário e para as comissões" - confessa o deputado, enquanto agarra na vermelha, coloca-a ao pescoço e, sem espelho, aconchega-a ao colarinho. "Isto é um género de farda".
No gabinete - que divide com Nuno Sá -, repousa um exemplar da literatura que lhe ocupa o vício. Chama-se ‘Livro' e recorda a emigração para França. "O ‘Livro', do José Luís Peixoto, não é melhor do que o meu [‘Heróis em Transumância, Emigrantes Clandestinos']. E eu fiz isso nos anos 80. Se não fosse a política, escrevia um romance de seis em seis meses".
"SOU SACERDOTE CÍVICO"
Aguarda-o a Comissão Parlamentar de Saúde, mas antes explica porque fora criticado severamente - desde Marcelo Rebelo de Sousa aos ‘Gato Fedorento' - quando declarara, face aos cortes nos salários dos políticos, que "é melhor mas é abrir também a cantina [da Assembleia da República] à noite ou, então, não há dinheiro para comer nos restaurantes", caso venham a haver mais cortes além destes.
"Digo as coisas mais graves com algum sentido de humor - eu raramente vou almoçar à cantina. Propus uma forma de poupança e levo porrada de toda a gente", contesta o deputado. "Sou um sacerdote cívico: não tenho dinheiro, devo a minha casa ao banco e tenho dois carros com dez anos. Mas estou preparado para continuar a fazer política".
Quem conhece o deputado de Braga reconhece-lhe sentido de humor mas também valor político. "É um intelectual". Licenciado em Filosofia, é professor.
Posto isto, Ricardo Gonçalves segue então para a Comissão para ouvir a Associação de Acupunctura. Já vai atrasado. Entra na sala e senta-se. A mesa disposta em ‘U' coloca-o frente-a-frente com Maria José Nogueira Pinto, do PSD. Fora ela que, em Dezembro último, reagindo a uma observação dele sobre a mudança de cor política dela, o chamou de "palhaço". Mas, hoje, já nada importa.
O deputado faz uma intervenção de cinco minutos e 52 segundos. "Até sou utilizador de acupunctura", aproveita para dizer, embora o importante seja que está solidário com as reivindicações deste sector, ao mesmo tempo que também lhes é crítico por não terem uma Ordem e "porque há gente [entre eles] que se deixou adormecer".
Ainda a Comissão não tinha terminado e Ricardo Gonçalves aproveitava para se meter com o deputado do BE João Semedo. "Então, há orçamento ou não há?" - de resto, esta viria a ser a pergunta de retórica que mais vezes o deputado faria, ao longo deste dia, para meter conversa com a Oposição.
NA CANTINA, POR UM DIA
Tem no bolso 69,19 euros, por dia de trabalhos parlamentares, para gastar em refeições e estada. Já são 13h43. O deputado decidiu hoje ir almoçar à cantina. Leva no bolso uma carta de um cidadão, de Atouguia da Baleia, Peniche, que lhe enviou um cheque de dez euros - diz que é para ele comer uma refeição em condições.
Ricardo Gonçalves compra a senha de almoço - 4,90 euros por uma sopa, calamares com arroz de tomate e fruta. Entra na fila para recolher o tabuleiro e, não tarda, outros deputados começam a meter-se com ele. "Então, veio à cantina!?" - vão dizendo. Ao que ele responde, mostrando o cheque: "Veja lá o que dizem de mim que até me mandam dinheiro para jantar".
Só no dia seguinte o deputado iria almoçar ao restaurante do quarto piso da Assembleia da República - pagando 17,50 euros, no bufete -, onde estaria, noutra mesa, Jaime Gama. Ricardo Gonçalves escolheria comer cabrito assado - que acompanharia com vinho alentejano - na companhia de quatro autarcas de Cabeceiras de Basto, Renato Leal, assessor do secretário de Estado António Braga, e mais dois deputados do PS, Isabel Coutinho e Nuno Sá. A conversa dominante nesse dia seria recordar a passagem do açoriano Renato Leal pelo Parlamento, na legislatura anterior.
NO PS, MAS À DIREITA
Esta quarta é dia de debate sobre o aumento do salário mínimo. Às 15h30, Ricardo Gonçalves senta-se no hemiciclo. Pouco depois, conversa com Maria de Belém - e viria a confessar mais tarde: "Daqui a cinco anos, farei de tudo para que ela seja eleita presidente". Mas, para Janeiro, Ricardo Gonçalves promete seguir um caminho enviesado. "Na primeira volta, sou capaz de votar Defensor Moura. O que importa é o Alegre ir à segunda. Aí votaria nele".
Pertence à esquerda liberal e foi sempre um crítico de Sócrates; o deputado de Braga acredita que se o Governo se tivesse coligado com o CDS - ou, numa segunda hipótese, se tivesse formado um bloco central - o País não tinha chegado à beira do abismo.
Às 17h30 votou contra a proposta do PCP sobre o salário mínimo, alinhando pela bitola socialista, que remete a decisão para a Concertação Social. E do hemiciclo foi, rapidamente, para o bar do Parlamento lanchar - um carioca de café, iogurte e salada de frutas, tudo por 4,75 euros.
De volta ao corredor dos gabinetes, Ricardo Gonçalves procura José Manuel Ribeiro para ultimarem um projecto-lei, que propõe abrir ao público todas as reuniões dos órgãos executivos colegiais das autarquias locais. O gabinete hoje ocupado por José Manuel Ribeiro em tempos foi de Sócrates. O 2238 fica mesmo à frente do gabinete de Ricardo. Lembra ele que o actual primeiro-ministro fizera questão de ali ficar para partilhar sala com Pedro Silva Pereira. "Eu e o Sócrates tínhamos discussões bravias à porta dos nossos gabinetes".
O BENFIQUISTA DE BRAGA
À noite começam a fazer-se os preparativos para ver na TV o Benfica-Lyon. A cantina de muitos deputados socialistas é o restaurante Leões do Rato, às portas da sede do PS. Mas não é o eleito para ver o jogo desta noite. Ricardo Gonçalves só iria lá jantar no dia seguinte, pagando 18 euros por uma canja, corvina grelhada e vinho tinto. Nessa ocasião, estaria ao seu lado o deputado João Paulo Pedrosa, de Leiria, que iria contar um episódio passado numa reunião do PS: "Sócrates discursou. O Ricardo pediu para falar e Sócrates disse: ‘Deputado Ricardo Gonçalves, tem 30 segundos para falar'. Ele subiu ao palanque e disse: ‘Muito bem, tenho 30 segundos para te elogiar e o resto do tempo para te criticar'. E assim foi".
O restaurante - ferrenho pelo Benfica - escolhido para assistir ao jogo é O Alves, em Alcântara. Quando Ricardo Gonçalves entrou para se sentar, já os encarnados perdiam por 1-0. Naturalmente que o deputado eleito pelo círculo de Braga se apressa a justificar que, além de benfiquista, é fã do clube da sua terra. Entram na mesa camarões e de seguida peixe-espada grelhado, acompanhado por vinho tinto - ele tem a doença de Crohn, por isso raramente bebe outra bebida alcoólica além de vinho. O jogo não vai de feição, de maneira que a conversa com mais quatro amigos - políticos de Braga e todos eles bem mais jovens - só poderia ser sobre mulheres e anedotas.
Pagos os 15 euros pela refeição, segue à boleia de Jorge Faria, adjunto do secretário de Estado das Comunidades, para o Parlamento. São 22h15. Ainda é tempo de fazer alguns telefonemas para Braga, entre a família e assuntos políticos pendentes.
Como deputado, Ricardo Gonçalves aufere 3624,41 euros ilíquidos por mês (vai perder 362 euros em 2011). Todas as semanas viaja de comboio entre Braga e Lisboa, a expensas do Estado - além de que recebe 412,44 euros para deslocações em serviço. É casado com Filomena, 46 anos, e é ela quem gere o dinheiro lá em casa. "Eu vejo o meu extracto e, quando preciso, digo-lhe: ‘Deposita mais algum dinheiro no meu cartão'", conta o deputado. Não têm filhos - e é neste momento que todo o humor lhe sai do rosto: "Às vezes, penso adoptar uma criança. E acho que devia fazê-lo, tenho muito para partilhar".
De renda e limpeza da casa, em Lisboa, paga 300 euros. Vive no prédio de João Soares, filho de Mário Soares, perto da praça das Flores e a menos de cinco minutos a pé do Parlamento. Partilha a casa com Jorge Faria, José Manuel Ribeiro, Fernando Jesus (também deputado) e Ernâni Loureiro, assessor do secretário de Estado da Economia e Inovação. No seu quarto, Ricardo Gonçalves tem uma mobília comprada em segunda-mão. É apenas uma cama com mesa de cabeceira - onde o rádio toca as notícias da manhã -, uma secretária e um roupeiro. "Eu só uso a casa para dormir", conta.
Como a noite ainda não acabou - e na maioria dos dias com 40 euros gastos em refeições -, por volta das 23h00, seguem alguns deputados do PS para o Café de S. Bento. Lisboa é prodigiosa em espaços de tertúlia. Quando a escolha não recai sobre este espaço, vão ao Snob, Foxtrot, a bares no Bairro Alto, ao Xafarix, ou ao Paço da Rainha. Não são só os deputados que por lá param e conversam, são várias as personalidades lisboetas. Ricardo Gonçalves fica lá até às duas da manhã, apenas bebeu dois Ice Tea, mas os amigos sabem que ele nunca os abandona na noite. Acompanha sempre o último.
AS DECLARAÇÕES DA POLÉMICA
"Foram tomadas decisões muito difíceis, obviamente que sendo eu neste momento deputado sou até dos que perde mais dinheiro (...). Nós, primeiro, tivemos um corte de cinco por cento..." - e, neste momento, é interrompido por um burburinho da assistência, entre risos e conversas trocadas.
"Foi simbólico, não rendeu dinheiro. (...) Agora, (...) levando em consideração o aumento de impostos e cortes, vamos perder 17,5 por cento ao mês, o que equivale a mais de dois salários por ano. Eu já ontem propus no Grupo Parlamentar [do PS], em que o [Francisco] Assis é o líder da bancada, que é melhor mas é abrir também a cantina à noite ou, então, não há dinheiro para comer nos restaurantes".
ERROU A DECLARAR RENDIMENTOS
Na declaração de rendimentos de 2005, entregue ao Tribunal Constitucional, Ricardo Gonçalves expôs como património imobiliário o seu apartamento de Braga - com crédito ao banco de 114 mil euros - e um oitavo indiviso de cinco propriedades em Alvaredo e quatro em Paderne - numa vive a mãe. Mais 28 mil euros a prazo e acções da EDP e da CIMPOR.
Declarou ainda um Mercedes 190D com mais de dez anos. Já em 2009, disse que só devia nove mil euros da casa e que tinha mais um Mercedes C, de 2001. O deputado esclarece que a última declaração "foi escrita à pressa" e que a dívida da casa é de 90 mil euros, além de que não vendeu qualquer bem imóvel da família.
NOTAS
650 EUROS
Num dia normal, o deputado de Braga gasta 41,22 euros em refeições: 650 euros em 16 dias.
300 EUROS
A parte do arrendamento da casa do deputado custa-lhe 300 euros/mês, ou 18,75 euros por dia.
1107,04 EUROS
Recebe 1107,04 euros de subsídio de refeição e estada, 69,19 euros por dia. São 16 dias em Lisboa.
Fonte: Correio da Manhã, 31-10-2010
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