O Manel, nos inícios dos anos sessenta, começou a verificar que o mundo ia para muito além da Serra Amarela, do Pé de Cabril ou da Bouça da Mó, mesmo para lá de São João do Campo. Tinha nascido em 1941,em Vilarinho das Furnas, portanto com pouco mais de vinte anos de idade, começou a constatar a presença nessa pacata localidade de onde, aliás, nunca tinha saído, a presença de um enorme pelotão de engenheiros, topógrafos e operários assistentes que espreitando por um tubo e escrevendo notas num caderno, operavam ou sondavam alguma coisa que desconhecia. Esse desabrochar para a civilização coincidiu com a ida, do nosso personagem, às “sortes” à vila de Covas (Terras de Bouro). Realmente ficou apurado para todo o serviço militar. Em 1962, assentou praça em Braga no Regimento de Infantaria nº 8. No fim da recruta não lhe foi dada qualquer Especialidade, dado que era analfabeto e no tocante à inteligência não fora bem abonado da mesma aquando da sua vinda ao mundo, pelo que se tornou no que na gíria do Exército se apelidava de “Soldado Básico”. Foi colocado no Regimento de Transmissões, situado na Graça, em Lisboa, exercendo funções na cozinha, como ajudante de cozinheiro. Para ele foi uma alegria, ia conhecer Lisboa, cidade que até há pouco tempo para si não existia. Em 1965, passou à disponibilidade, mas já não regressou a Vilarinho, desconhecendo inclusivamente se a sua terra ainda existia, pois sabia da construção da barragem e que o seu rincão ia ser completamente alagado. Na vida dura da capital sustentava-se com a realização de biscates que fazia nas obras, ou como carregador, ou ainda como engraxate.
No início da minha carreira de investigador criminal fui colocado em Lisboa, concretamente na 5ª Secção. Foi aqui que a minha vida se cruzou com a do Manel. Neste sector eram investigados toda a gama de furtos simples, desde os furtos de carteira até ao furto por descuido passando pelo doméstico. Ainda Estagiário, um dos primeiros serviços que me foi distribuído foi um furto por descuido perpetrado numa cabine telefónica, daquelas existentes, na altura na Praça do Rossio. Na época os telemóveis eram uma miragem. Efectivamente, o denunciante, era um vendedor da Regisconta, firma que comercializava máquinas registadoras e material para escritório, lembram-se do “slogan” publicitário “Aquela Máquina…”. Na verdade, este indivíduo dirigiu-se a uma dessas cabines a fim de efectuar um telefonema, deixando a porta entreaberta e colocando a pasta usada no seu mister no solo. Aproveitando o facto de este se encontrar entretido no falatório, o autor introduziu a mão no interior da referida cabina de forma rápida e silenciosamente apropriou-se da pasta em causa, deixando, de seguida, o local com a maior calma do mundo. Após ter concluído a conversa, o nosso homem procura a pasta e nada, tinha ganho asas. Efectua diligências no sentido de tentar saber o que se passou. Numa conversa com um dos engraxadores que se encontravam instalados nesse passeio, veio a apurar que um indivíduo conhecido pelo “Colombiano” tinha passado junto à cabine em causa e transportava uma pasta tipo ”James Bond”, que segundo o tal engraxador não era habitual. O testemunho deste engraxador, era o único facto que podia contribuir para a identificação do “amigo do alheio”. Perante esta situação era imperioso identificar para inquirir, como testemunha, a tal testemunha. Porém, este não se identificou ao lesado, alegando que não queria problemas com ninguém. No entanto, aquele conseguiu saber que os outros companheiros de profissão o tratavam por “Manel Vilarinho”.
Nesta conformidade, num fim de dia quando após o serviço, na companhia do meu camarada Rosas, passava pelo Rossio, lembrei-me que no âmbito do Processo que investigava o crime acima referido era necessário identificar e seguidamente notificar o “Manel Vilarinho”. Na verdade, acautelando uma defesa em massa, entrei numa das cabines, simulando um telefonema, sempre com o intuito de, disfarçadamente, constatar quem era a personagem. A determinada altura lá consegui verificar quem era o Manel. Obviamente que me dirigi a ele identificando-me profissionalmente. Recolhi os seus elementos identificativos e após notifiquei-o para se apresentar na Directoria de Lisboa, para ser inquirido como testemunha, recordando-lhe o caso que ele iria testemunhar. Aliás, lembrei-o disso várias vezes de modo a que ele ali comparecesse sem nenhum receio. Com efeito, gerou-se entre ambos uma empatia, quiçá gerada pelo facto de ambos termos origens na zona do Gerês e por ter sentido que estava na presença de um homem simples mas de boa índole. Respondeu-me: Esteja à vontade Sr. Agente que eu lá estarei no dia marcado. No dia e hora combinados, do Manel nem vestígios. Face à não comparência, numa outra ocasião lá me dirigi, novamente, ao Rossio, onde consegui apanhar outra vez a nossa única testemunha. Dei-lhe um raspanete pelo seu incumprimento e a gaguejar lá me foi dizendo que tinha perdido a contra-fé que eu lhe havia entregado e, por isso, não sabia o dia da comparência e já nem sequer se recordava do meu nome. Deixei passar as desculpas e de forma mais ríspida entreguei-lhe outra notificação para nova data, desta vez avisei-o que se não comparecesse iria ter problemas sérios. Não valeu de nada a ameaça, o notificado voltou a não comparecer. Perante esta realidade, passados uns tempos lá passei pelo Rossio e lá estava o Manel. De facto, nem me deixou falar, de imediato se dirigiu à minha pessoa pedindo-me mil desculpas justificando a sua falta por motivos de doença. Não lhe liguei muito, apenas lhe entreguei uma nova notificação dizendo-lhe que para a próxima deixava o estado de testemunha para passar a arguido e iria à Gomes Freire, pelas orelhas se necessário fosse. Não sei se foi por causa da promessa de castigo, mas desta vez lá compareceu, o Manel nem parecia a mesma pessoa, trajava fato, camisa e gravata, o vestuário estava-lhe um pouco largo indícios que tinha pertencido anteriormente a uma pessoa muito mais forte. Barbeado e bem penteado, o cabelo estava puxado todo para trás e bem lustroso com uma grossa camada de brilhantina. Carregava na mão uma grande mala de viagem que devia ser idêntica à da Linda Suza, quando emigrou a salto para França. Toda a cena me pareceu desfocada, todavia, no momento o que interessava era inquirir a testemunha e levá-lo se necessário fosse ao Arquivo de Registo de Informações, a fim, de identificar convenientemente o suspeito de ser o autor do crime investigado. Na verdade, assim aconteceu após o depoimento, no ARI, reconheceu, por via fotográfica, o tal Colombiano, que, em boa verdade não era Colombiano mas sim Chileno, Juan Garcia Gutierrez, morador da Travessa do Fala Só, em Lisboa. Quando o confrontei de que o identificado não era Colombiano mas sim Chileno, calmamente e sem qualquer ponta de racismo ou xenofobia disse-me: Colombianos, Chilenos ou Mexicanos para mim são todos da mesma raça.
Depois de ultimar as diligências e perante o seu aspecto desejei-lhe boa viagem ao mesmo tempo que lhe entreguei o documento que permitia a saída do edifício policial. Contudo, o Manel com ar de muito espanto aceitando o documento, pergunta: “Atão” “Sôr” Agente não era para ser preso? Nesta altura mandei-o sentar outra vez, retirando-lhe das mãos o documento de saída e fui novamente ao ARI, desta vez aos registos de mandados de captura ou paradeiro, com o intuito de verificar se constava algo em nome de Manuel Rodrigues Barbosa, também conhecido pelo Manel Vilarinho. Na realidade, lá constava um mandado de captura que obrigava o nosso homem a ir para a cadeia. De facto, não tinha pago uma multa de 50$50, por exercício ilegal de profissão, engraxava sem licença da Câmara, esse incumprimento foi transformado em 3 (três) de prisão efectiva. Quando confrontei o Manel com esta realidade disse-lhe: Vai viajar descansado que eu, por estes motivos, não te meto no “xadrês”, quem quiser que te prenda, eu não. Todavia, de forma encarecida, não estou a ser irónico, solicitou-me que cumprisse o Mandado pois assim saldava as contas. Ainda me disse: Hoje é Sexta-Feira, passo este fim-de-semana na “gaiola” e na Segunda já estou livre outra vez. Só perco o jogo do Benfica, mas como as coisas andam mal lá “prós” lado da Luz, não perco grande coisa. Face à solicitação ingénua mas muito educada lá conduzi o Manel aos calabouços onde passou o fim-de-semana, se calhar, com mais fartura e comodidade do que na sua própria casa, ou melhor quarto.
Fonte: Luís Guimarães (Facebook), em 28-06-2012