Abril já ia em meio e no horizonte, a nascente, uma bola de fogo elevava-se lentamente entre as serras do Gerês e da Cabreira. Os primeiros raios de sol iluminavam não só as glicínias carregadas de belos cachos azuis, as “sempre noivas” que mais pareciam um tapete todo branquinho, bem como toda a flor bafejada pelas setas douradas que atravessavam por entre as árvores do jardim.
Na sala grande, iluminada pelas janelas e porta abertas, ouvia-se o chilrear dos pássaros pousados nos arames da ramada que cobria todo o quinteiro, onde já começavam a despontar os pequenos rebentos das videiras.
A mesa estava toda engalanada com uma toalha alvíssima de linho, tecida pelas obreiras do Colégio da Regeneração, e que enchia os nossos olhos de tão alva que era.
Mas nós, crianças, o que nos prendia a atenção, não era a toalha de linho mas sim o que se encontrava sobre ela. Era a rosca do pão-de-ló, dentro do papel amarelado pelo calor do forno onde era cozido, pelo doce sortido e, por último, como não podia faltar a garrafa de vinho do Porto, pronta a despejar o seu delicioso conteúdo nos respectivos cálices. Ao lado as famosas maçãzinhas que a minha avó guardava religiosamente e com muito cuidado, para regalo do senhor abade. Eram embrulhadas numa toalha de linho e guardadas em sítio que os netos as não descobrissem, pois seria uma grande tragédia se isso viesse a acontecer.O compasso já estava próximo, pois o tilintar da campainha já se ouvia a tocar bastante perto. O arco enfeitado com o papel de cores todo recortado, trabalho efectuado pelas pessoas da casa, ao serão junto à lareira, encontrava-se levantado em frente ao portão e ao lado da capela.
Quando o senhor abade chegava junto do portão, aberto de par em par, uma criança colocada em cima dum banco, falava ao “arco” como era uso e costume naquela época. Depois de declamar uns versos, que com toda a certeza foram decorados à luz da vela nas noites que precediam o grande dia, acompanhados com os ralhos do costume, dizia entusiasmada: -viva o senhor abade, e soltando uma pombinha branca que tinha presa nas suas mãos, a criança finalizava a situação a que foi obrigada, ficando assim liberta de tal sacrifício. O que eu mais gostava desta cena era o momento de soltar a pombinha e vê-la voar.
O rapaz da campainha entrava o portão a tocar com toda a força da sua tenra idade. O fogueteiro estava a postos para lançar o primeiro foguete, logo que o senhor abade se aproximasse do portão. Entretanto a campainha transportada pelo rapaz e a sineta da capela tocavam ao mesmo tempo, fazendo um barulho ensurdecedor, que se ouvia por quase todo o vale.
O senhor abade subia as escadas lentamente, dada a sua avançada idade porque o seu porte avantajado, não lhe permitia mais. O suor escorria-lhe pelo rosto, pois a essa hora da manhã o calor já apertava. O senhor abade entrava na sala abençoava toda a família e sentava-se extenuado, aproveitando para limpar, com o seu enorme lenço, o suor da cara. Depois de todos beijarem o Senhor na Cruz, ele conversava um pouco connosco.
A cena era enternecedora e a minha avó, de poucas palavras, falava em tom de respeito para o chefe máximo da nossa paróquia, e delicadamente o convidava a provar qualquer iguaria que se encontrasse na mesa. Mas ele apenas queria um copo de água e ao mesmo tempo olhava para a comitiva que o acompanhava, para ficar com a certeza de que eles não estavam a exceder-se, pois isso não fazia parte dos seus planos.
Depois de se sentar e descansar um pouco, levantava-se encaminhando-se com lentidão para a porta, trocando gracejos e interrogando-nos sobre os nossos projectos futuros, enquanto os meus familiares e amigos vinham acompanhá-lo até ao portão.
O toque da campainha soava no ar, os foguetes estalejavam e a sineta da capela cruzava com o toque aflitivo da campainha tentando fazer-se ouvir no meio daquele barulho.
Foi então que alguém, entre as crianças, num sussurro para que mais ninguém ouvisse disse: -vamos às canas.
Como sempre nestas coisas os rapazes saíam vencedores e nós, meninas, ficávamos sempre tristes e furiosas por não os podermos acompanhar. O que todos nós ignorávamos era o perigo que eles corriam.
Fonte: Correio do Minho, em 7-08-2011
Na sala grande, iluminada pelas janelas e porta abertas, ouvia-se o chilrear dos pássaros pousados nos arames da ramada que cobria todo o quinteiro, onde já começavam a despontar os pequenos rebentos das videiras.
A mesa estava toda engalanada com uma toalha alvíssima de linho, tecida pelas obreiras do Colégio da Regeneração, e que enchia os nossos olhos de tão alva que era.
Mas nós, crianças, o que nos prendia a atenção, não era a toalha de linho mas sim o que se encontrava sobre ela. Era a rosca do pão-de-ló, dentro do papel amarelado pelo calor do forno onde era cozido, pelo doce sortido e, por último, como não podia faltar a garrafa de vinho do Porto, pronta a despejar o seu delicioso conteúdo nos respectivos cálices. Ao lado as famosas maçãzinhas que a minha avó guardava religiosamente e com muito cuidado, para regalo do senhor abade. Eram embrulhadas numa toalha de linho e guardadas em sítio que os netos as não descobrissem, pois seria uma grande tragédia se isso viesse a acontecer.O compasso já estava próximo, pois o tilintar da campainha já se ouvia a tocar bastante perto. O arco enfeitado com o papel de cores todo recortado, trabalho efectuado pelas pessoas da casa, ao serão junto à lareira, encontrava-se levantado em frente ao portão e ao lado da capela.
Quando o senhor abade chegava junto do portão, aberto de par em par, uma criança colocada em cima dum banco, falava ao “arco” como era uso e costume naquela época. Depois de declamar uns versos, que com toda a certeza foram decorados à luz da vela nas noites que precediam o grande dia, acompanhados com os ralhos do costume, dizia entusiasmada: -viva o senhor abade, e soltando uma pombinha branca que tinha presa nas suas mãos, a criança finalizava a situação a que foi obrigada, ficando assim liberta de tal sacrifício. O que eu mais gostava desta cena era o momento de soltar a pombinha e vê-la voar.
O rapaz da campainha entrava o portão a tocar com toda a força da sua tenra idade. O fogueteiro estava a postos para lançar o primeiro foguete, logo que o senhor abade se aproximasse do portão. Entretanto a campainha transportada pelo rapaz e a sineta da capela tocavam ao mesmo tempo, fazendo um barulho ensurdecedor, que se ouvia por quase todo o vale.
O senhor abade subia as escadas lentamente, dada a sua avançada idade porque o seu porte avantajado, não lhe permitia mais. O suor escorria-lhe pelo rosto, pois a essa hora da manhã o calor já apertava. O senhor abade entrava na sala abençoava toda a família e sentava-se extenuado, aproveitando para limpar, com o seu enorme lenço, o suor da cara. Depois de todos beijarem o Senhor na Cruz, ele conversava um pouco connosco.
A cena era enternecedora e a minha avó, de poucas palavras, falava em tom de respeito para o chefe máximo da nossa paróquia, e delicadamente o convidava a provar qualquer iguaria que se encontrasse na mesa. Mas ele apenas queria um copo de água e ao mesmo tempo olhava para a comitiva que o acompanhava, para ficar com a certeza de que eles não estavam a exceder-se, pois isso não fazia parte dos seus planos.
Depois de se sentar e descansar um pouco, levantava-se encaminhando-se com lentidão para a porta, trocando gracejos e interrogando-nos sobre os nossos projectos futuros, enquanto os meus familiares e amigos vinham acompanhá-lo até ao portão.
O toque da campainha soava no ar, os foguetes estalejavam e a sineta da capela cruzava com o toque aflitivo da campainha tentando fazer-se ouvir no meio daquele barulho.
Foi então que alguém, entre as crianças, num sussurro para que mais ninguém ouvisse disse: -vamos às canas.
Como sempre nestas coisas os rapazes saíam vencedores e nós, meninas, ficávamos sempre tristes e furiosas por não os podermos acompanhar. O que todos nós ignorávamos era o perigo que eles corriam.
Fonte: Correio do Minho, em 7-08-2011
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