Foi construída em 1807 pelos irmãos Gomes da Silva, tesoureiros da Sé de Braga. No ano seguinte a população incendiou-a, instigada pelo Abade de Carvalheira. Dispunha de privilégios excepcionais, que beneficiavam os trabalhadores. A planta da fábrica ainda existia em 1908 e até foi fotografada, mas acabou por levar sumiço.
Ficou para a história como a fábrica de vidros da Serra do Gerês, apesar da sua existência efémera. Quanto muito, só terá laborado durante pouco mais de um ano na planície de Linhares, em Vilarinho da Furna, na margem esquerda do rio Homem. Mesmo assim, foi a primeira e a última fábrica de vidros que funcionou no Minho, após a romanização. Volvidos dois séculos sobre a sua instalação, continua, ainda assim, intrigante a implantação de uma indústria vidreira em zona, à época, muito isolada e de difícil acesso, o que condicionava o escoamento rápido dos produtos.
A estrada romana da Jeira constituía, ao tempo, a única via de ligação entre Braga e aquele ponto inóspito da serra do Gerês, mas o seu estado de conservação já não seria então dos melhores. A planície de Linhares, agora submersa pela albufeira de Vilarinho da Furna, que fez também desaparecer esta antiga aldeia comunitária, era uma “extensa chã”, como assim a descrevera Tude de Sousa. À sua volta abundava lenha que garantia a laboração, além de farto granito, com muito felspato e quartzo, entre outras inclusões daquela rocha, permitindo a extracção destas matérias-primas essenciais ao fabrico de um vidro de qualidade.
O alvará com todos os privilégios, graças e isenções foi concedido pelo então príncipe-regente D. João, em Mafra, a 15 de Abril de 1807, já com as invasões napoleónicas à porta. Pouco mais de um ano após ter iniciado a laboração, a fábrica seria incendiada pela população local, por se ter feito constar que nela estariam franceses, embora o Abade de Carvalheira, o instigador do incêndio, receasse uma invasão das tropas napoleónicas pela fronteira da Portela do Homem, havendo assim necessidade de não deixar nada à mercê dos invasores. No entanto, admite-se que tenham sido os ingleses a lançar a atoarda para atiçar os ânimos do povo ou que fossem mesmo os instigadores do incêndio: a fábrica não convinha aos interesses de Inglaterra, enquanto produtora de vidro. O incêndio terá ocorrido a 29 de Junho ou a 11 de Julho de 1808. Um desencontro de datas ainda por esclarecer.
Trabalhadores “isentos do serviço militar de mar e terra”
Os estatutos, aprovados pelo príncipe regente D. João, com a atribuição do alvará de 15 de Abril de 1807, estabeleciam que a sociedade da Real Fábrica de Vidros de Vilarinho da Furna, na serra do Gerês, tinha a duração de dez anos, embora renováveis findo tal prazo. Durante esse período, mais nenhuma outra fábrica vidreira podia estabelecer-se na província do Minho, privilégio a que se juntavam outros, como “a isenção de direitos de entrada para todas as máquinas utensis e materiais”.
As vendas e a circulação dos vidros da fábrica no comércio interno eram “inteiramente livres por mar ou terra, e somente sujeitos aos manifestos e registos nas Alfândegas ou Casas de Despacho”. Os empregados obrigavam-se “a cumprir o tempo e encargos de seus ajustes”. Nenhuma outra fábrica os podia admitir enquanto durasse o prazo de serviço àquela sociedade, a não ser se houvesse autorização dos patrões, uma vez quitados “todos os empenhos contraídos”. Enquanto lá trabalhassem, estavam “isentos do serviço militar de mar e terra”. Em matéria cível ou criminal, concedia-se-lhes a “graça de serem admitidos a livramento dos crimes” que não fossem capitais, “sob alvará de fiança” e em todas as causas cíveis ou crimes em que fossem autores ou réus só compareciam perante o Juiz Conservador em Braga, que tinha sido nomeado, por determinação régia, para a observância dos aspectos judiciais da fábrica, nomeadamente os relacionados com os seus direitos e privilégios. Até em caso de “motins ou desordem” dentro da fábrica era àquela autoridade que os donos remetiam os trabalhadores “culpados”, para que fossem castigados.
Entre os privilégios concedidos, ressalta o que considerava lícito à sociedade “extrair sem reserva, embaraço, ou ónus algum as lenhas, giestas e mais materiais”, em “todos os bosques e montes maninhos das circunvizinhanças”, a qualquer distância. Eram autorizados “todos os cortes” que a direcção da fábrica mandasse fazer, desde que requeridos aos juízes territoriais auxiliares. Era também “privilégio exclusivo” da sociedade estudar e recolher “as diversas qualidades de pedra e seixo branco” nas quantidades necessárias ao seu fabrico diário, o que significava que mais nenhum fabricante podia abastecer-se desses materiais naquela zona do Gerês, nem investigar as suas qualidades.
O Estado obrigava-se até a manter sempre conservados os caminhos para que o transporte do vidro fabricado se procedesse “sem perigo”. Por determinação régia, competiria ao Inspector-geral das Estradas do Minho ou, “na falta deste”, ao Juiz Conservador zelar pelos acessos “a fim de evitar quebras de vidros e outros danos”.
Fábrica de vidros de Vilarinho arrancou apenas com um dos primitivos mentores do projecto
O projecto da Fábrica de Vidro de Vilarinho da Furna começou com uns, mas acabou por arrancar com outros. Félix José Pereira Lima foi o único investidor que transitou do primitivo grupo de sócios, entretanto desfeito, para a sociedade que, em 15 de Abril de 1807, veio a ter como principal sócio o comerciante bracarense Manuel José Gomes da Silva. Apesar de ter passado à história como um ilustre desconhecido, por ausência de dados biográficos, nem por isso Félix Lima deixa de ser uma figura importante na implantação da indústria vidreira em Linhares, na serra do Gerês. A ele pertencera a iniciativa de arrancar com a fábrica, formando o primitivo grupo de sócios. Integravam-no Manuel António Vieira Guimarães, José António da Silva Reis e José Mendes Braga, nomes que constam do manuscrito, arquivado com o alvará do príncipe regente D. João, no Arquivo Distrital de Braga, que Manuel Artur Norton transcreve no seu estudo, publicado em 1974. A falta de dados biográficos não permite saber também quem foram esses primitivos investidores (e mentores do projecto). O manuscrito dá apenas conta de que nenhum deles conseguira reunir o capital necessário ao arranque da fábrica, levando Félix Lima a requerer ao príncipe regente e futuro rei D. João VI a exclusão destes sócios e, ao mesmo tempo, a confirmação da nova sociedade, que tinha como principal sócio Manuel José Gomes da Silva. Félix Lima passa então a figurar como último sócio de entre os seis que constituem a nova sociedade, o que faz supor que fosse agora sócio minoritário.
A “Manuel Gomes da Silva, e Companhia”, tal como se designara a empresa, integrava outros dois membros da família Gomes da Silva: Pedro José e Constantino de Matos. Imediatamente a seguir a estes surge, como sócia, Clara Vitória de Araújo e Azevedo, irmã do Conde da Barca, figura de proa do pensamento económico do Minho, em finais do século XVIII. Os restantes dois sócios eram Joaquim José Fernandes da Silva e… Félix Pereira Lima. A sociedade conseguira reunir 40 mil réis. Quando a fábrica estava em plena laboração, mas longe de atingir a desejada expansão, já tinha gastos 60 mil réis.
Sócios maioritários eram tesoureiros da Sé de Braga
Três dos seis sócios fundadores da fábrica de vidros da serra do Gerês, desaparecida em 1808, pertenciam à mesma família. Eram os irmãos Manuel José Gomes da Silva e Pedro José Gomes da Silva, filhos mais velhos de um mercador de Braga (estes Gomes da Silva foram também ao tempo tesoureiros da Sé de Braga). O terceiro, Constantino Joaquim de Matos, era cunhado de Manuel José Gomes da Silva, o principal sócio da fábrica, a julgar pela escritura da empresa, de 1807. O alvará concedido nesse ano pelo príncipe regente D. João, com os estatutos da sociedade, consta do núcleo de manuscritos da colecção denominada Conde da Barca, existente no Arquivo Distrital de Braga. A sua divulgação inédita deve-se ao doutor Manuel Artur Norton, da Universidade do Minho, num estudo que publicou, em 1974, na revista “O distrito de Braga”. Depois de Tude Sousa, pode considerar-se aquele trabalho de Manuel Artur Norton o único contributo importante que se conhece, desde 1974, para a história da desaparecida fábrica de vidros de Vilarinho da Furna. Por ele, fica-se também a saber quem era a família Gomes da Silva: Manuel e Pedro Gomes da Silva eram filhos do primeiro matrimónio de João Gomes da Silva, um mercador e controlador de baetas e panos, nomeado Capitão de Ordenanças pelo arcebispo de Braga, D. Gaspar de Bragança.
Manuel José herdou do pai o negócio de panos, mas, depois de casado, ligou-se ao sogro no negócio de rendas. O seu irmão Pedro José foi cónego da Sé de Braga. Desconhece-se o montante das quotas que os dois irmãos teriam na empresa de vidros do Gerês, mas é de crer, pela escritura, que tenham disponibilizado as maiores quantias. Manuel Gomes da Silva aparece à cabeça da sociedade e o irmão Pedro é o primeiro dos restantes sócios mencionados a seguir à palavra “Companhia”, fazendo supor uma hierarquia em função do valor das quotas, facto que Manuel Artur Norton admite como o mais provável.
Única relíquia é a planta do palacete em Braga dos Gomes da Silva
É a única relíquia associada de alguma maneira à história da fábrica de vidros de Vilarinho da Furna, na serra do Gerês. Trata-se da planta da casa seiscentista de que foi proprietário Manuel Gomes da Silva, o principal sócio da empresa. A casa ficava na desaparecida Rua das Águas, que o Estado-maior das tropas napoleónicas ocupou, quando os franceses invadiram Braga. Ocupava o local do Edifício de Turismo no lado da Avenida da Liberdade. Os Gomes da Silva deixaram descendentes por todo o século XIX e muito por dentro do século XX, mas a última descendente, D. Delfina Gomes, que viveu no palacete da família Roby, em Infias, morreu há cerca de 35 anos, em Braga. Há joias suas no Museu dos Biscainhos. Delfina Gomes recebeu-as dos tetravôs, os Gomes da Silva.
A planta da fábrica levou sumiço. Em 4 de Outubro de 1908, Tude de Sousa, ao escrever a um dos descendentes dos sócios fundadores, agradecia o facto de lhe ter emprestado a planta da fábrica de vidros de Vilarinho, e devolvia-a. Esse descendente era José Gomes da Silva Matos de Sousa Cardoso. “Onde se encontrará aquela planta?”, perguntava, em 1974, Artur Norton. Tude de Sousa mandou fotografar a planta da fábrica de vidros de Vilarinho, que lhe fora emprestada, e foi assim que ficou com uma cópia, que reproduziu num dos seus livros, mas que “tão mal se vê” (queixava-se Artur Norton em 1974). A cópia, a partir da fotografia feita no Porto, pertenceu ao espólio de Tude de Sousa, que continua também em parte incerta.
Fonte: Revista SIM, em 24-07-2013
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